Mencionei este provérbio na última reflexão (acerca de “devagar se vai ao longe”). Nesse texto, assumi ambos com significados semelhantes no que toca a nutrirmos a paciência necessária, a curiosidade do devir e a permissão do fluir do processo.
Assim que me foi lançado o desafio de escrever especificamente acerca deste provérbio, fui direcionada para outro aspeto: o nosso cérebro necessita de sentir reforço! De registar missão cumprida. Para o nosso cérebro, o reforço é, nem mais nem menos, o estímulo pós-ação que desencadeia uma sensação de prazer. Então… tal como em “quem não arrisca, não petisca”, será um grão o necessário para oferecer a perceção de recompensa a um cérebro? A todos os cérebros? O que acontece se um grão não for suficiente?
A resposta começa na primeira coisa importante: somos habitados por vários corpos. O corpo fisiológico, que opera a nível automático, é constituído por reações químicas e por padrões fisiológicos que põem a “máquina” em andamento: um “andamento” que é mais ou menos “saudável”, que gasta mais ou menos energia, que se regula mais ou menos dentro dos limites que evocam uma sensação de maior ou menor bem-estar e um funcionamento global mais ou menos equilibrado. Este corpo fisiológico necessita de cumprir os seus limites, os seus tetos de ativação para realmente ativar. Isto é: por exemplo, é necessária uma determinada quantidade e tipo de nutrientes para inibir a sensação de fome e provocar a sensação de saciedade. Assim que o estímulo de alimento é percebido como suficiente por aquele cérebro, há a sensação de reforço.
Portanto, neste sentido, um “grão” pode fechar um ciclo, pode ser percebido como reforço e considerar-se um pequeno passo rumo ao objetivo. Por outro lado, pode, simplesmente, não ser suficiente: a galinha come “dois” grãos e fica saciada. Ou, também pode acontecer que a insuficiência de um grão desencadeie a sensação de insatisfação e ative uma procura mais acesa e mais urgente por outro grão, por muitos outros grãos, por tantos grãos que este organismo passa a não experimentar a sensação de saciedade e foca toda a sua atenção na procura. Às tantas, a própria procura é o que provoca reforço, a maior parte das vezes indo além do que é fisiologicamente necessário! Este padrão de funcionamento provoca ansiedade e evoca a sensação de insatisfação e frustração constantes.
E, neste momento, já estamos a passar o corpo fisiológico, a atravessar o corpo emocional e a emergir no corpo mental. Porque é que o nosso corpo mental busca mais grãos do que o nosso corpo fisiológico necessita?
A resposta está na segunda coisa importante: o corpo mental estabelece uma conexão afetiva com os estímulos, fazendo com que os sentimentos passem a comandar a tomada de decisão. Esta tomada de decisão leva não só a manter a sobrevivência do organismo (no seu nível automático, corpo fisiológico), mas também a ir ao encontro do estado de prazer e de sentido. Dois autores que escrevem maravilhosamente sobre este tema são António e Hanna Damásio, neste artigo. Os autores avançam que assim que o nível mental emerge, o conhecimento transmitido pelo corpo fisiológico torna-se, de alguma forma, não escutado e subvalorizado: “não é assim tão difícil comer em excesso, especialmente ingredientes cujos efeitos imediatos são positivos em termos de sentimento e produção de energia (…) infelizmente, os seus efeitos a longo prazo são nocivos”. Como diz a minha querida amiga e colega Dra. Joana Melo e Castro “grão a grão, apanha a galinha uma indigestão”.
Ao ultrapassar o que é fisiologicamente necessário, estamos a ensinar ao corpo fisiológico que, afinal, ele necessita de “mais” para reagir/ativar. No decorrer de sucessivas decisões que venham a desregular este nível automático, então, uma mensagem é despoletada (um sinal, uma manifestação somática) para pedir o resgate da homeostasia: ou seja, ficamos doentes, medicamente falando. O que fazer para não deixar que esta desregulação chegue tão longe?
A resposta está na terceira coisa importante: o corpo mental tem outra faceta ou potencialidade. Tanto é ele que nos conduz a decisões nefastas, como é ele que nos permite fazer uso da consciência daquilo que está a acontecer connosco, dos nossos padrões automáticos de comportamento, de emocionalidade, de pensamento, de resposta, no sentido de modularmos a ação dos determinantes fisiológicos do nosso organismo. “O nível mental, emergindo como emerge na nossa consciência, torna a pessoa num potencial agente da sua própria regulação interna” (Damásio & Damásio, 2015). Assim, eu posso utilizar a minha consciência para reconhecer que estou perante a minha capacidade de me ensinar, de ensinar o meu organismo a repor o equilíbrio. Quantos grãos são o equilíbrio?
Se não for um grão, sejam dois grãos, três ou quatro. O importante é cada pessoa desenvolver a presença em si própria, conhecer o seu teto, a sua necessidade, o seu tempo, o seu limite, saber parar, saber reconhecer internamente o reforço e o prazer (práticas de mindfulness são benéficas neste sentido). Só no momento em que o cérebro reconhece que recebeu reforço, pode fechar o ciclo e avançar. Cessar a procura urgente de mais grãos. Harmonizar. Baixar a ansiedade, transformar a insatisfação em completude e a frustração em conquista.
Sofia Leite
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