Nada como um dia depois do outro

De facto, a nossa capacidade de resposta está no presente. O nosso sistema nervoso (SN) funciona no presente. Reparem que viver no passado com os olhos do passado não permite avançar, mas viver com o pensamento no futuro também não ajuda assim tanto a lá chegar. O SN amadureceu no decorrer dos anos, da evolução (entenda-se), para reagir cada vez melhor. Mas, para isso, necessita de estar no presente, pois reagir significa “agir como resposta a um estímulo”. Para isso, é necessário que o organismo esteja, de facto, perante o estímulo. Agora: também no decorrer dos anos, o SN amadureceu no sentido de ir além do presente, atravessando uma ponte que o levou desde a pura ativação do instinto (aqui e agora) até à capacidade de planeamento como forma de otimizar o seu lugar e o seu contexto (aqui e além do aqui e agora e além do agora).

De uma forma simplista (mesmo muito simplista), a memória é uma competência que nos permite reter informação do passado, informação essa que utilizamos no presente; e a capacidade de planeamento é uma competência que nos permite posicionar o objetivo no futuro, uma meta a alcançar. Entre estas duas competências (a memória e a capacidade de planeamento), tece-se a possibilidade de aprendizagem e a complexidade crescente com que vamos (re)agindo ao e com o nosso meio ambiente.

“Nada como um dia depois do outro” é imperativo tanto quando se impõe na nossa vida um objetivo que delineamos para o futuro, como quando se trava na nossa vida uma viagem de visita ao passado. Vamos ver porquê e como:

No primeiro caso: o nosso cérebro identificou o ponto B onde pretende chegar. Identificou uma série de estratégias para lá chegar, com base nos seus recursos atuais (!), identificou uma sequência que lhe servirá de guia para implementar estas estratégias. Ótimo. Agora é confiar nessa capacidade de planeamento e seguir dia-a-dia, implementando-o. No final de cada dia, é sempre possível fazer o ajuste das estratégias em função de algum percalço que tenha acontecido, algum contratempo, algum imprevisto. Porque, às vezes, há bons imprevistos! É tão bom estar aberto a eles. O que é que comummente acontece? Há a estratégia delineada para o ponto B onde queremos chegar, mas, para que tudo corra bem, pomo-nos à frente do tempo imaginando as peripécias que podem surgir. Resultado: nenhuma ação acontece porque o SN não está, de facto, perante a peripécia à qual terá de reagir, está apenas perante a ameaça de ela existir. Há o bloqueio, a chamada “ansiedade”. No organismo, a ansiedade é um potencial de ação bloqueado, uma carga de energia sem ter por onde se descarregar porque o organismo está bloqueado na reação e na possibilidade de transformar esse potencial em ação. Por outras palavras, está impedido de estar no presente, agindo e reagindo.

Nota de alívio: o cérebro tem as suas funções muito bem delineadas e é, em situações normais, muito produtivo, nomeadamente, na sua capacidade de manter online (em modo de “pano de fundo”) um ponto B (focadamente designado como objetivo a alcançar) ao mesmo tempo que “desliga” desse ponto B e desfruta do caminho. E mais: “um dia depois do outro” é exatamente o que vai permitir a este cérebro caminhar, avançar, agir e ajustar as suas ações para o ponto B em função das circunstâncias.

No segundo caso: o nosso cérebro inicia-se numa viagem ao passado, numa viagem a si mesmo, às memórias que o construiu o constrói, ao conteúdo que o foi habitando e levando a criar uma narrativa que vai dando como mais coesa ao longo da vida. Esta viagem SÓ tem sentido reconstitutivo SE estiver banhada de presente: viagem olhada com os olhos do presente e com a consciência do tempo presente. “Um dia depois do outro” é exatamente o necessário para reconstruir uma nova narrativa, é preciso tempo para o SN acomodar esta nova narrativa, é preciso concentração para o passado se vestir de presente sem o deixarmos resvalar pelo hábito de ser um passado banhado de passado. É preciso tempo para o SN produzir novas associações com o presente, novas referências, novas âncoras. É preciso que estas novas âncoras se fortaleçam em termos de circuitos ativos e se façam associar com o dia-a-dia da pessoa. Portanto, esta viagem ao passado só é reconstrutiva se o seu resultado for construído no formato de “um dia depois do outro”, na tranquilidade de estar sempre presente em si próprio.

Parêntesis final: voltar ao passado com os olhos do presente é, em si, uma capacidade de resposta. A psicoterapia é isto e é, em si, uma capacidade de resposta. A psicoterapia é uma forma de viagem no tempo, viagem na nossa consciência, possibilidade de consciências paralelas: por um lado, a consciência que temos “agora”, aquela com que crescemos, que nos habitou a vida toda e que se desenvolveu à medida que os dias passaram… por outro lado, a consciência a que vamos tendo acesso quando visitamos o passado com os olhos do presente. Já, voltar ao passado com os mesmos olhos do passado não é uma capacidade de resposta, é um mergulhar cíclico no mesmo modo de estar que apenas irá ser perpetuado, sem mudança, sem alívio.

Sofia Leite

Photo by Estée Janssens on Unsplash

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