Gravidez não é doença

Olhando, primeiro, à expressão em si: será que ela nos diz que, na sociedade em que vivemos, apenas a doença é merecedora de cuidados? Se estivesse doente, já podia passar primeiro? Se estivesse doente, já podia ficar em casa a descansar? Se estivesse doente, já receberia cuidados? Talvez vivamos, realmente, numa sociedade em que se mima a doença e se despreze o que não o é. E, aqui, todos temos responsabilidade de mudar: Mimem as crianças tanto quando elas estão doentes como quando estão saudáveis, a correr e a brincar. Mimem-nas igual. Cuidem-nas igual. Amem-nas igual para que estas crianças se tornem adultos para quem a doença não é um íman para dar, atrair e receber o cuidado dos outros. Adultos saudáveis na sua estrutura e na sua relação de afeto com o mundo. Para que expressões como esta deixem, realmente, de fazer sentido na sua estrutura, independentemente da condição à qual a doença é comparada.

Agora, neste mundo temporário em que esta expressão ainda existe, olhemos aos intervenientes e comecemos por uma verdade: tudo o que se diz, diz mais de quem o diz do que a quem é dito.

Em relação a quem diz: de onde vêm as fundações desta expressão? Ouve-se, nela, uma certa negação de que a mulher grávida vive um período excecional em termos de gestão de recursos vitais. O que se nega, realmente? Negar-se-á este facto indiscutível de se estar a gerar nela um novo ser? Partindo do princípio que a gravidez é uma situação que implica cuidados físicos específicos, para não falar no corpo emocional e no corpo simbólico, esta expressão pode ter a sua fundação na negação de afeto ao outro ou na negação de submissão do Eu.

Salvaguarda: Tudo isto, acima de tudo, é um jogo de percepções! Baseia-se nas nossas crenças, na forma como interpretamos e como respondemos ao outro e ao seu comportamento. Um jogo de interações, de defesas, de crenças, de modos de relação com o Eu e com o Outro. Estas duas propostas que se seguem são exercícios de tomada de perspetiva e não pretendem, de todo, açambarcar todas as possibilidades de experiência humana. Outras perspetivas são bem-vindas.

Negação de afeto: Muitas vezes, a carência afetiva edifica uma aprendizagem que toma o aspeto de negação de afeto aos outros. Não por vingança. Por estrutura. Uma pessoa que vinga na vida pela luta, pela resistência, pela carapaça que a solidão monta, dia-após-dia, na dura caminhada de muitos invernos, uma pessoa que transporta uma aprendizagem de poucos mimos, que transporta um apurado sentido prático e mecânico, será uma pessoa disponível a acolher a vulnerabilidade orgânica que a vida tece? Muitas vezes, não é. Esta pessoa aprendeu uma carapaça da vida e tem essa carapaça a seus olhos para olhar a vida dos outros. O desencontro aqui é que a mulher grávida pode ver-se e sentir-se privada do acolhimento, do cuidado, da delicadeza, do carinho, da participação solidária que espera dos outros, através dos seus olhos. Além disso, a gravidez, vê-se; e o facto de se ver pode tornar agressivas, violentas, até cruéis estas faltas de cuidado, de carinho, de acolhimento.

Negação de submissão: Agora versando sobre o lado da mulher grávida, também pode haver aqui outra questão humana, intensa e profunda: o uso do poder. A mulher usar e sentir a gravidez como ferramenta de “poder” para obter cuidados e carinhos que, em outras situações correntes da vida, aprendeu que não há razão para serem recebidos. A mulher sentir-se num momento especial da sua vida e impôr aos outros a obrigação de corresponder. E, simplesmente, há quem se perturbe com esta percepção de que a mulher grávida está a usar o seu poder (pode estar ou não, na realidade) e se negue a esta submissão de poder. Se, realmente, estiver a acontecer esta posição de poder da mulher grávida, a dita negação de submissão pode ser, apenas, uma imposição de limites pessoais verbalizados com uma expressão automática deste tipo, não pensada, infeliz, que é o caso de muitas expressões automáticas: correm o risco de serem infelizes e desajustadas.

Conclusão: “Gravidez não é doença”, é verdade, não é.

Sofia Leite

Photo by Jonathan Borba on Unsplash

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