Ora bem (estou a subir as sobrancelhas enquanto penso em como começar este desafio). Vamos lá falar sobre o assunto do invisível. Penso em Cesariny: “Há o perigo de um grito lindíssimo quando andas assim comigo no invisível”. De facto, o invisível. Esse infinito manto transparente.
Começar pelo visível, talvez?
Anatomicamente, o coração e os olhos estão ligados. Sabiam que a retina tem a maior taxa de consumo de oxigénio por unidade de volume corporal? Assim, o sistema vascular e a região ocular evoluíram num sentido estreitamente colaborante. Devido à estrutura vascular do olho, que é tão facilmente acessível, podemos dizer que os olhos podem, realmente, ser uma janela para o coração [1]. Qual coração? O coração anatómico ou o coração simbólico? É que também se diz que os olhos são uma janela para a alma…
Mas os olhos serem janela para dentro diz-nos que os olhos transmitem para fora o que se passa dentro. O que esta expressão nos diz é o contrário: o que os olhos recolhem do exterior (vêem) é transmitido para dentro. E também nos diz que “o que os olhos não podem ver, o coração não pode sentir”. Será?
Assumo que “olhos” é uma sinédoque — figura de estilo que toma a parte pelo todo — uma vez que se refere às vias de recolha de informação do meio, quer por meio da visão, audição, olfato, tato… No fundo, e importante, “olhos” refere-se à informação que, por norma, todos os humanos têm a capacidade de receber e cujo significado partilham e comunicam, a nível racional e consciente.
Posto isto, veremos duas opções:
A primeira opção é que “o que os olhos não vêm” é uma metáfora para “aquilo que não sabemos nem podemos saber”, portanto, não podemos considerar no nosso interior. De facto, todos temos a experiência do quão o conhecimento pode ser transformador da experiência. De como o conhecimento influencia o próprio ato de conhecer; de como o conhecimento pode impregnar toda a nossa perceção, emocionalidade, o sentir, o pensar, o agir. Fala-se, até, do fardo que pode ser o “conhecer”. “Preferia não saber!” já disseram ou ouviram? Neste sentido, “o que os olhos não vêem, o coração não sente”. Ou seja, o que não podemos saber acerca do meio, não influência o nosso sentir nem o ato de conhecer.
A segunda opção parece-me ser o que, de facto, estava em cima da mesa quando recebi a sugestão deste provérbio: será que apenas recolhemos informação de forma racional e consciente? Será que “olhos” apenas se refere a esta dimensão do saber? E o saber inconsciente? E os automatismos de conhecimento? E a intuição? O que é a intuição? Será que estas vias de conhecimento do “invisível” não são válidas e que, portanto, “o que os olhos não vêem, o coração, ainda assim, sente”?
A definição de intuição é a capacidade de compreender ou saber algo de forma imediata, sem intervenção do processamento consciente [2]. Alguns estudos apontam para a neurobiologia do processamento intuitivo, no entanto, ainda muito trabalho é necessário para realmente compreender este fenómeno. Há uma razão simples para não o compreendermos ainda com clareza. É que baseamos o nosso conhecimento e compreensão na capacidade racional consciente. Como é óbvio, não será fácil usar esta ferramenta para compreender algo que se passa fora dela. É como termos uma lanterna que ilumina o quarto onde não está o que procuramos, mas sabemos que existe. E sabemos que existe especialmente no seio de relações extremamente significativas, qualquer que seja a razão da união e do significado, e que tomam um caráter visceral no nosso organismo, no nosso sentir.
Em suma:
O que os olhos não vêem, pode ser visto de outra maneira. Nem sempre o é, mas está aberta a porta da possibilidade. Se for visto de outra maneira, o coração pode sentir.
Salvaguardas:
1) saber inconsciente, automatismos de conhecimento e intuição são processos de conhecimento diferentes, com diferentes graus de adaptação à realidade partilhada por todos.
2) por vezes, é difícil reconhecer a diferença entre estes processos e distingui-los no nosso ato de conhecer. Mas é uma distinção muito importante! Confundirmos processamento intuitivo com um processo de automatismo de conhecimento pode ter consequências nefastas na relação com o Eu e com o Outro. Exemplo? Se uma pessoa “acha” ou “sente” algo numa relação, isso pode ser fruto de intuição (sendo que determinadas pistas foram selecionadas de forma imediata e subconsciente [2]), ou pode ser fruto de automatismo, ou padrão de relação, ou seja, “eu tenho a crença/automatismo que as pessoas são agressivas comigo, então eu tenho maior tendência para considerar que as pessoas estão a ser agressivas comigo quando não estão.” É uma linha ténue para quem sente e que pode levar a muitas falsas crenças acerca da relação que são nefastas para ambas as pessoas envolvidas.
Sofia Leite
Referências:
[1] Flammer et al. (2013). The eye and the heart. European Heart Journal, Vol. 34(17), pp. 1270-78. DOI: 10.1093/eurheartj/eht023 https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3640200/
[2] Volz, K. G. & von Cramon, D. Y. (2006). What neuroscience can tell about intuitive processes in the context of perceptual discovery. Journal of Cognitive Neuroscience, Vol. 18(12), pp. 2077-87. DOI: 0.1162/jocn.2006.18.12.207 https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17129192/
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Adoro como tornas algo tão simples em algo tão harmoniosamente complexo!
Estamos classificados como animais racionais, interpretamos e refletimos sobre aquilo que os nossos “radares” nos transmitem.. a intuição acho que também entra como radar e acho que também nos ajuda a “ver”.
Contudo, também sabiamente se ouve que “o mais cego é aquele que não quer ver”!
Talvez os “olhos do coração”sejam os que realmente decidem o que queremos ou não ver…?
Obrigada, Maria João, pela tua mensagem e o tempo dos teus pensamentos sobre este tema que escrevi.
Acho muito leve, todo o seu trabalho ea forma de usar os ditados populares.
Talvez nos voltemos a encontrar
Obrigada, Sílvia. Encontraremos. Até breve!